sábado, 30 de novembro de 2024

Ano Litúrgico - Definições Gerais


Com este primeiro domingo do Advento, começamos um novo ano litúrgico. Para comemorar este tempo de salvação, um verdadeiro tempo de esperança, a Igreja Católica é pioneira, pois, ao longo da História, participou das discussões que reconheceram as datas do ano litúrgico. São tantas questões interessantes quando abordamos sobre o ano litúrgico que temos dificuldades para decidir o que explicamos primeiro. A princípio, é interessante sabermos, com José Bortolini (1952-), teólogo católico, que a expressão “ano litúrgico” começou a ser utilizada no século XIX, ao surgir o Movimento Litúrgico, um movimento para a renovação da liturgia que fora coroado no século passado, com o Concílio Ecumênico Vaticano II (1962-1965). Assim, “seu primeiro grande fruto foi a constituição Sacrosanctum Concilium, sobre a Liturgia. Antes de se chamar ‘Ano Litúrgico’, recebera outros nomes, por exemplo, ‘Ano da Igreja’ e ‘Ano cristão’.”[1] A seguir, citarei três autores que trazem algumas reflexões introdutórias sobre o tema “ano litúrgico”.

1) O primeiro autor é Augusto Bergamini (1952-), teólogo católico. Ele inicia o tema escrevendo: “Ao abordar o assunto do ano litúrgico, não podemos esquecer o atual contexto sociocultural assinalado pela secularização e pelos condicionamentos de uma sociedade técnico-industrial.”[2] O que Bergamini quer dizer quando cita a palavra “secularização”? É importante definirmos o termo, para compreendermos como ele coloca em dificuldade a prática do ano litúrgico em nosso tempo. Usarei a explicação do Papa alemão Bento XVI (1927-2022). De acordo com ele, “a secularização, que se apresenta nas culturas como um delineamento do mundo e da humanidade sem referência à Transcendência, impregna todos os aspectos da vida quotidiana e desenvolve uma mentalidade em que Deus se tornou total ou parcialmente ausente da existência e da consciência do homem.”[3] E: “No nosso tempo verificou-se um fenômeno particularmente perigoso para a fé: de fato, existe uma forma de ateísmo que definimos ‘prático’, no qual não se negam as verdades da fé ou os ritos religiosos, mas simplesmente se consideram irrelevantes para a existência diária, destacadas da vida, inúteis. Então, com frequência, cremos em Deus de modo superficial, e vivemos ‘como se Deus não existisse’ (etsi Deus non daretur). Mas, no final, este modo de viver resulta ainda mais destrutivo, porque leva à indiferença à fé e à questão de Deus.”[4] Estas palavras deixam claro que uma das principais características da secularização é tornar, de forma progressiva, a ideia de Deus ausente da consciência pública. Na cultura secular, Deus é olvidado, desdenhado e negado. Isto é grave, porque Deus deixa de ser considerado o estruturador da vida social e a fonte de valores que embasa todos os tipos de discussões, desde as políticas e econômicas, até as pertencentes ao âmbito da pesquisa científica.

A partir da explicação acima, entendemos melhor o motivo pelo qual Bergamini afirma que o assunto “ano litúrgico” traz à memória o atual contexto sociocultural assinalado pela secularização e pelos ditames de uma sociedade técnico-industrial. Esse contexto é muito diferente daquele no qual apareceu e se desenvolveu no ano litúrgico. Por isso, não é sem motivo que já ouvi colegas questionarem ou colocarem em discussão a própria realidade da festa religiosa trazida pelo ano litúrgico, por declararem que ela se trata do resíduo de um mundo sagrado já superado. Há pessoas que desejam que nosso tempo dê espaço unicamente a um tipo de fé secular que apenas valorize o que é humano como autêntico local de encontro com o Transcendente, considerado como o ser ou energia que poderia ser chamado de “Deus”. Como agir diante de tal realidade? Bergamini afirma: “Diante dessa situação, a pastoral não pode ceder nem ao extremismo secularizante nem ao integrismo religioso de formas de outros tempos; deve, em vez, levar em conta o avanço cultural ocorrido, e ainda hoje em via de evolução, em busca de uma purificação e de uma redescoberta da fé nos seus conteúdos e nas suas atitudes mais puras e autênticas.”[5] Nosso desafio, diante da secularização, é decidir livremente (do mesmo modo que o fez Jesus Cristo), por um éthos preciso do tempo, vivendo o próprio tempo em uma lógica eucarística, ou seja, não entregue ao conceito de uma lógica de posse, mas da partilha; não a uma lógica de consumo, mas da comunhão; e não a uma lógica da instantaneidade, mas da espera.[6]

2) O segundo autor é Bento XVI. Ele ensinou que aprender sobre o ano litúrgico é refletir sobre a dimensão do tempo, o qual perenemente exerce sobre nós um grande fascínio.[7] Nas palavras de Bergamini: “O que caracteriza a religião hebraica e cristã é o fato de que Deus entrou na história. O tempo está impregnado, prenhe de eternidade.”[8] O ensinamento litúrgico do Catecismo da Igreja Católica demonstra que, através da liturgia, a Igreja celebra o tempo. Goffredo Boselli (1967 - ), teólogo católico, com propriedade, escreveu: “O cristão, sacerdote do mundo, na liturgia reconhece o tempo principalmente como uma criatura de Deus que foi dada ao ser humano. O tempo é dom, porque é o lugar onde Deus age e salva, onde Cristo viveu os seus dias, revelando o mistério de Deus: a história da salvação o é somente se é salvação da história.”[9] Se nos perguntarmos o que é a revelação, a resposta mais sensata é que se trata de economia de salvação, isto é, o plano divino que se realiza constantemente na história. A Constituição Dogmática Dei Verbum afirma: “Esta ‘economia’ da Revelação executa-se por meio de ações e palavras intimamente relacionadas entre si, de tal maneira que as obras, realizadas por Deus na história da salvação, manifestam e corroboram a doutrina e as realidades significadas pelas palavras, enquanto as palavras declaram as obras e esclarecem o mistério nelas contido. E, a verdade profunda, tanto a respeito de Deus como a respeito da salvação dos homens, manifesta-se-nos por meio desta Revelação no Cristo, que é simultaneamente, o mediador e a plenitude de toda a Revelação.”[10] O ano litúrgico celebra o mistério de Deus em Cristo, encontrando-se enraizado na gama de eventos através dos quais Deus entrou na história e na vida do ser humano.[11] Todos sabemos o que é não ter tempo: reclamamos bastante que o tempo é pouco e que nos falta tempo para realizar tudo o que planejamos diária ou semanalmente. “Também a este propósito a Igreja tem uma ‘boa notícia’ para dar: Deus nos doa o Seu tempo. Nós temos sempre pouco tempo; sobretudo para o Senhor não sabemos ou, por vezes, não o queremos encontrar. Pois bem, Deus tem tempo para nós! Esta é a primeira coisa que o início de um ano litúrgico nos faz descobrir com admiração sempre nova.”[12] É confortante sabermos que Deus doa seu precioso tempo para nós. De que maneira ele faz isso? Entrando na história com sua Palavra e suas obras de salvação, visando conduzi-la ao eterno e torná-la história da aliança entre Deus e os humanos. Para os cristãos, o tempo manifesta algo da divindade: ele é, em si, um sinal elementar do amor de Deus. Diante do tempo, qual pode ser a atitude humana? Há dois caminhos: pode reconhecer que o tempo é “... um dom que o homem, como qualquer outra coisa, é capaz de valorizar ou, ao contrário, dissipar; de compreender no seu significado, ou descuidar com obtusa superficialidade.”[13]

3) O terceiro autor é José Bortolini (1952-), teólogo católico. Ele inicia sua exposição explicando o que é o ano litúrgico: “... é a celebração da vida de Jesus Cristo ao longo de um ano. A cada ano, os cristãos revivem as etapas mais importantes da vida de nosso Senhor: seu nascimento, a morte, ressurreição, ascensão e o envio do Espírito Santo.”[14] A Constituição Sacrosanctum Concilium também oferece uma explicação sobre o significado de ano litúrgico: “A santa mãe Igreja considera seu dever celebrar, em determinados dias do ano, a memória sagrada da obra de salvação do seu divino esposo.”[15] Dom Orani Tempesta (1950- ) define o ano litúrgico como segue: “O ano litúrgico é uma maneira pela qual a Igreja organiza e celebra os mistérios da fé cristã ao longo de um ciclo anual. Ele é dividido em diferentes tempos e solenidades que ajudam os fiéis a meditar sobre a vida, morte e ressurreição de Jesus Cristo.”[16] Estas definições claramente indicam que o centro do ano litúrgico é a Pessoa e a obra de Jesus Cristo. O Catecismo da Igreja Católica afirma: “Na era da Igreja, situada entre a páscoa de Cristo, já realizada uma vez por todas, e a consumação dela no Reino de Deus, a liturgia celebrada em dias fixos está toda impregnada da novidade do mistério de Cristo.”[17] Portanto, o conteúdo do ano litúrgico se trata da essência da fé da Igreja: o mistério de Cristo. Somos membros do Corpo de Cristo, a Igreja. Por isso, o ano litúrgico tem a função de formar o Cristo em cada um dos crentes, plasmando-os e conduzindo-os à estatura dele em sua plenitude (Efésios 4,13).[18]  

É essencial que o conteúdo ensinado no ano litúrgico seja apresentado com fidelidade à Tradição cristã. Porém, deve também levar em conta a linguagem do homem contemporâneo e ser celebrado com as corretas implicações de vida. Somente desse modo, o conteúdo do ano litúrgico não favorecerá a qualquer alienação de tipo sacral, mas auxiliará perenemente os crentes a se encontrarem com o Deus da história – o Pai de nosso Senhor Jesus Cristo. Augusto Bergamini disse: “O ano litúrgico não é uma ideia, mas é uma pessoa, Jesus Cristo e o seu mistério realizado no tempo e que hoje a Igreja celebra sacramentalmente como ‘memória’, ‘presença’, ‘profecia’.”[19] É muito importante entendermos que o ano litúrgico não é uma ideia ou mero conjunto de preceitos; trata-se, ao contrário, de uma Pessoa – Jesus Cristo –, cujos atos nós celebramos durante um ano. Isso está de acordo com o princípio do que é ser cristão. O Papa Bento XVI (1927-2005) escreveu: “No início do ser cristão não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte, e, assim, o rumo decisivo.”[20]

Há diferença entre o ano litúrgico e o ano civil: se no ano civil, somos orientados pelas estações (por exemplo, primavera e verão), e pelas festas cívicas (por exemplo, Tiradentes e Independência), no ano litúrgico existe uma caminhada de fé marcada pelos momentos fortes da vida do Senhor.[21] O ano litúrgico “revela todo o mistério de Cristo no decorrer do ano, desde a encarnação e nascimento até a ascensão, ao pentecostes, à expectativa da feliz esperança e da vinda do Senhor.”[22] O que os cristãos ganham em seguir as orientações do ano litúrgico? Dom Orani ensina que cada um dos tempos litúrgicos “... possui uma característica própria e permite uma experiência espiritual que conduz os fiéis ao longo dos mistérios da salvação.”[23] Isto está de acordo com as palavras da Sacrosanctum Concilium: “Com esta recordação dos mistérios da redenção, a Igreja oferece aos fiéis as riquezas das obras e merecimentos do seu Senhor, a ponto de os tornar como que presentes a todo tempo, para que os fiéis, sejam postos em contato com eles, e sejam repletos da graça da salvação.”[24] Estas palavras indicam que há bênçãos sobre aqueles que observam as datas litúrgicas, pois o tempo é reconhecido como dom de salvação. Trata-se, portanto, de uma experiência espiritual riquíssima. Estas incontáveis bênçãos podem ser usufruídas por aqueles que são verdadeiramente católicos. E, o que é ser verdadeiramente católico? Não pretendo responder a esta pergunta através de uma síntese, como se o catolicismo pudesse ser resumido em algum tipo de fórmula. Ser católico é diferente de conhecer e participar de um programa de partido político. É mais do que isso: trata-se de uma adequação a um modo de vida que envolve uma mudança completa nos âmbitos pessoal, social, ético e, principalmente, espiritual. Quando estas áreas mudam, nossos planos mudam também. Portanto, ser católico envolve um projeto de vida como um todo, que tem como fundamento se amoldar ao pensamento de Cristo revelado pela Santa Igreja. Faço minhas as sábias palavras do teólogo católico alemão Joseph Ratzinger (1927-2022), quando explicava o que é ser católico: “Claro que se pode apontar para pontos essenciais, que primeiro se crê em Deus, e num Deus que conhece o Homem, que entra em relação com o Homem e que é acessível para nós, que se tornou acessível em Cristo, e que faz História conosco. Tornou-se tão concreto para nós que até fundou uma comunidade.”[25] Concluo este texto ratificando que ser católico é seguir o ano litúrgico que tem Jesus Cristo como seu centro, conforme considerou Goffredo Boselli: “Por meio da celebração dos mistérios de Cristo durante o ano litúrgico, sempre mais conhecendo e aprofundando o mistério de Cristo em toda a sua policromia, o Cristo habita no cristão.”[26]

01 de dezembro de 2024

Heber Ramos Bertuci



Notas:

[1] BORTOLINI, José, Advento e Natal, (Paulus, 2007), perg. 1, p. 8.

[2] BERGAMINI, Augusto, Ano Litúrgico. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille (Orgs), Dicionário de liturgia, (Paulus, 1992), p. 58.

[3] BENTO XVI. Discurso na Assembleia Plenária do Pontifício Conselho para a Cultura (08/03/2008). Apud ASSUNÇÃO, Rudy, Bento XVI, a Igreja Católica e o “Espírito da Modernidade”, (Paulus; Ecclesiae, 2018), p. 181.

[4] BENTO XVI, O ano da fé. Os caminhos para chegar ao conhecimento de Deus (Audiência Geral, 14 de novembro de 2012). In: Idem, Oração e santidade, (Molokai, 2018), p. 405, vol. IV.

[5] BERGAMINI, Augusto, Ano Litúrgico. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille (Orgs), Dicionário de liturgia, (Paulus, 1992), p. 58.

[6] BOSELLI, Goffredo, A celebração sacramental do mistério pascal. In: FISICHELLA, Rino (Org.), Comentário teológico pastoral – Catecismo da Igreja Católica, (Loyola, 2024), p. 308.

[7] BENTO XVI, Primeiro domingo do Advento (Angelus, 30/11/2008). In: Idem, E o Verbo se fez carne, (Ecclesiae, 2014), p. 85, grifo do autor.

[8] BERGAMINI, Augusto, Ano Litúrgico. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille (Orgs), Dicionário de liturgia, (Paulus, 1992), p. 59.

[9] BOSELLI, Goffredo, A celebração sacramental do mistério pascal. In: FISICHELLA, Rino (Org.), Comentário teológico pastoral – Catecismo da Igreja Católica, (Loyola, 2024), p. 308.

[10] Constituição Dogmática Dei Verbum, 2.

[11] BERGAMINI, Augusto, Ano Litúrgico. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille (Orgs), Dicionário de liturgia, (Paulus, 1992), p. 59.

[12] BENTO XVI, Primeiro domingo do Advento (Angelus, 30/11/2008). In: Idem, E o Verbo se fez carne, (Ecclesiae, 2014), p. 85, grifos do autor.

[13] BENTO XVI, Primeiro domingo do Advento (Angelus, 30/11/2008). In: Idem, E o Verbo se fez carne, (Ecclesiae, 2014), p. 85.

[14] BORTOLINI, José, Advento e Natal, (Paulus, 2007), perg. 1, p. 7.

[15] Constituição Sacrosanctum Concilium, 102.

[16] TEMPESTA, João Orani, O ano litúrgico de 2025 – Ano C: São Lucas. Testemunho de fé – Arquidiocese do Rio de Janeiro, (1 a 7 de dezembro de 2024), p. 6.

[17] Catecismo da Igreja Católica, 1164.

[18] BOSELLI, Goffredo, A celebração sacramental do mistério pascal. In: FISICHELLA, Rino (Org.), Comentário teológico pastoral – Catecismo da Igreja Católica, (Loyola, 2024), p. 309.

[19] BERGAMINI, Augusto, Ano Litúrgico. In: SARTORE, Domenico; TRIACCA, Achille (Orgs), Dicionário de liturgia, (Paulus, 1992), p. 58.

[21] BORTOLINI, José, Advento e Natal, (Paulus, 2007), perg. 1, p. 7.

[22] Constituição Sacrosanctum Concilium, 102.

[23] TEMPESTA, João Orani, O ano litúrgico de 2025 – Ano C: São Lucas. Testemunho de fé – Arquidiocese do Rio de Janeiro, (1 a 7 de dezembro de 2024), p. 6.

[24] Constituição Sacrosanctum Concilium, 102.

[26] BOSELLI, Goffredo, A celebração sacramental do mistério pascal. In: FISICHELLA, Rino (Org.), Comentário teológico pastoral – Catecismo da Igreja Católica, (Loyola, 2024), p. 309.


Nenhum comentário:

Postar um comentário